sábado, 14 de abril de 2012

SEM AMAR, NEM ODIAR




Por Nelson Rodrigues (*)

O brasileiro é um feriado. Vi isso, anteontem, e de repente. Era uma terça-feira e — note-se — o primeiro dia útil depois de sexta, sábado, domingo e segunda de Natal. Imaginei que, exausto da própria ociosidade, o brasileiro estivesse no escritório, na oficina ou na pedreira, fazendo a sua pátria. O meu táxi ainda deslizava pela rua Francisco Sá. E eu já via, com olhos da imaginação, uma praia deserta, sem uma mísera alma ou de calção ou de biquíni.

Todavia, quando dobro para a avenida Atlântica, eis o que vejo: do Forte de Copacabana ao Vigia, era uma só multidão que daria para lotar várias vezes o maior Fla-Flu. Por um momento, eu, na mais amarga perplexidade, não sabia o que pensar. Eram os mesmos umbigos paradisíacos da véspera, e de todas as vésperas. Essa nudez multiplicada deu-me o que pensar. Foi aí que descobri esta verdade nacional: — o brasileiro é um feriado, temos alma de feriado.
Até a dobra do Leme tive tempo de propor a mim mesmo a seguinte questão: — “Se o brasileiro não sai da praia, quem faz o Brasil?”. Mas vejam vocês: não era bem isso que eu queria dizer. Ia falar de Adolpho Bloch e não dos umbigos em flor. Imaginem que o homem da Manchete fez uma recente viagem à Rússia. Andou por lá, olhou, olhou e voltou correndo para o Brasil. Desembarca ali no Galeão, e é assaltado por amigos, conhecidos e parentes. Todos perguntavam: — “Que tal? Que tal?”. Mas Adolpho Bloch fez mistério, fez suspense. Só falou quando, finalmente, entrou no seu apartamento de mármore. E, então, fez esta síntese fulminante: — “O russo ainda come três pepinos por dia”. Os presentes se entreolharam, num mudo horror. Adolfo repetiu: — “Três pepinos”.

Foi então que o Paschoal Carlos Magno que, num canto, ouvia tudo, abriu a boca: — “Hoje, o russo come três pepinos. No tempo do czar, comia um”. E assim, segundo o Adolpho de um lado e o Paschoal de outro, o papel da Grande Revolução foi acrescentar, no prato do povo, mais dois pepinos.

Eis o que eu queria dizer: quando veio, garoto, da própria Rússia, não sei se o Adolpho teria um pepino para lamber. No tempo em que eu morava na rua Alegre, ele ia residir, com a família, em Pereira Nunes, no limite de Aldeia Campista com Andaraí. Nem sempre, naquele tempo, tínhamos um pepino para comer. Hoje, as varandas do seu apartamento pendem sobre a piscina do Copacabana Palace.

Mas o menino de Pereira Nunes continua enterrado na sua carne. O velho Adolpho toma banho numa piscina de Paulina Bonaparte; a pia onde escova os dentes tem bica de ouro. Não importa, nada importa. O menino está encravado na sua vida. E, ainda hoje, milionário, sua voz tem uma pungência, uma plangência insuportáveis. Sim, por vezes, usa uma humildade crispada de certos mendigos patéticos. E a vontade que se tem é de pingar-lhe, no pires imaginário, a moeda da nossa esmola.

As nossas fomes eram paralelas, eram vizinhas. Lembro-me de um garoto louro, sardento, que vi muitas vezes em Pereira Nunes. Talvez fosse, ou não, Adolpho Bloch. Seja como for, não nos falamos nunca. Não vou dramatizar, mas existe entre nós o vínculo físico da fome.

Já contei o episódio da merenda no pátio da escola pública. Eu, com uma mísera e humilhadíssima banana (nem sempre a levava) e outros com sanduíches de goiabada, de bife, de ovo. O que então me fascinava era pão com ovo. Havia, lá, um garoto que não mudava de merenda. E a trazia embrulhada em papel fino. Sem pressa desfazia o nó, atirava fora o barbante, o papel e, então, começava a comer. Pão com ovo, sempre. A gema escorria-lhe como baba amarela.

Quase meio século depois, entro em casa. Beijo Lúcia e digo à empregada: — “Manda fazer sanduíche de pão com ovo”. Lúcia intervém: — “Não faz não, que nós vamos jantar”. Insisto: — “Meu anjo, quero pão com ovo. Estou com vontade. Cismei”. Pouco depois, tirou-se o jantar. Mas eu comi mesmo pão com ovo. Lúcia não entendeu, nem podia entender. Eu fazia, ali, uma maravilhosa imitação de vida. De repente, baixara em mim a fome de 1919. Era, de novo, o pátio de colégio. Lúcia diz: — “Meu filho, limpa no queixo”. Era a gema que escorria. Tudo como na infância profunda. Ah, um dos meus traumas infantis foi um sanduíche.

Eu entendo o ressentimento do Adolpho Bloch contra os três pepinos da Revolução. É a velha fome que se crispa como uma víbora. Aí está: ela não passa e repito: — a fome não passa, nunca. Outro dia, Adolpho Bloch passou por mim. Paramos no sinal, lado a lado, eu no meu táxi, ele no seu carro. O seu automóvel nunca parece o mesmo da véspera. É como se ele comprasse um por dia. Se me disserem que seu carro tem uma cascata artificial, com filhote de jacaré, eu direi: — “Tem”.

Senti, ao mesmo tempo, que o luxo não o mudou em nada. O apartamento de mármore, a bica de ouro, o automóvel suntuário — tudo isso é, para ele, irreal, eis a palavra, irreal. Nada substitui a fome pretérita, mas inarredável. Janta ou almoça como um Nero. E o menino esfomeado continua gemendo mansamente dentro dele.

Mas eu dizia que a fome não passou para Adolpho Bloch, nem para mim. Na infância, ainda conheci uma fome relativa. Havia um mínimo para comer (eu me vejo comendo mariola. Ou melhor: não a mastigava.

Simplesmente, lambia a mariola, para eternizá-la. Levava assim horas). Mas, de 30 a 35, conheci a grande fome. Às vezes, entrava num botequim e pedia: — “Me dá um copo de água, por obséquio”. Não estava bebendo, estava comendo água.

Nesse período, de 30 a 35 (nosso jornal fora empastelado em 30), eu aprendi o seguinte: — o sujeito que não come não se revolta. É a verdade: — não se revolta. Fui a menos indignada das fomes. Eu me sentia inteiramente desfibrado. Certa vez, aconteceu uma que me feriu para sempre. Vinha eu pela rua dos Ourives e olhei acidentalmente para um casal. O rapaz perguntou insolentíssímo: — “Que é que está olhando?”. Baixei a cabeça e apressei o passo. Mas ia pensando: — “Se ele me der um bofetão, eu não reajo”. Naquela ocasião, não tinha emprego, não tinha nada. E certos pundonores, certos brios exigem um salário e as três refeições. Aprendi mais: a fome não odeia nem ama. Se me aparecesse a Ava Gardner, de Salomé, eu continuaria incomovível. Durante esses cinco anos, não namorei. Fui incapaz de um sentimento forte. A fome esvaziou-me; e eu me sentia oco, sem entranhas, como um autopsiado.

[28/12/1967]

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(*) Publicado em 1993 pela Editora Companhia de Letras. Quando não escrevo deixo-lhes com grandes escritores, para vocês não se viciarem na péssima, que sou eu. Só quero acrescentra que hoje, em Cuba só se come meio pepino. (LP)

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