O título que dei a este escrito é uma paráfrase de uma frase famosa do Nelson Rodrigues. Eu já falei aqui da minha admiração pelo escritor pernambucano, mas ainda não falei do ódio que tenho de sua temática, especialmente quando se trata de mulheres. Em sua obra a mulher é tratada de uma forma bastante cruel e machista. Quando me indicaram sua leitura há algum tempo, me avisaram que, como eu era uma devoradora de livros, e tentava deixar de ser machista, eu poderia me horrorizar com alguns de seus casos, quando tratava do comportamento feminino.
Eu comecei a ler temerosa, com meus pudores religiosos em forma de cruz, porque já havia visto uns filmes cujos roteiros eram de peças teatrais suas e havia ficado horrorizada. Para mim foi um surpresa, não sua abordagem da humanidade, mas sua maneira de escrever e narrar os fatos com tanta precisão e elegância. Confesso que comecei a invejá-lo na escrita.
O Nelson é um escritor que se faz odiar com o que escreve, mas não nos deixa parar de lê-lo, porque o faz com extrema eficiência. Ou seja, é um artista da palavra. Um verdadeiro escritor. Sua obra ainda sofre muitos preconceitos e injustiças, por causa de suas ideias sobre a humanidade. E sobre a mulher, então...
Eu abordo Nelson hoje porque sua obra é um exemplo muito bom para ver o que está se tentando fazer, a partir do tal de Ministérios da Mulheres, comandado por uma mulher chamada Iriny, que outro dia grafei Irany, mas que todos entenderam. Estamos à beira de voltar às fogueiras da inquisição, onde se tenta censurar o humor, a publicidade e até as novelas.
Como dizem por aí, um exemplo é melhor do que mil palavras. Então eu lhes deixo neste fim de semana, pois vou curtir Gravatá, e não mais o friozinho, pois aquilo também está ficando quente, um texto do Nelson Rodrigues, mais um vez, que ele intitulou “A Esbofeteada” e que foi publicado inicialmente em “A vida como ela é”, sua coluna no jornal “Última Hora” (1951 — 1961). Hoje ele pode ser encontrado em qualquer pesquisa do Google. Vão lendo, e lá embaixo eu me encontro com vocês para um abraço de fim de semana:
“Virou-se para as coleguinhas:
— Como meu namorado, eu confesso francamente: nunca vi! Tem um gênio! Que gênio!
Indagaram:
— Feroz?
E Ismênia:
— Se é feroz? Puxa! Precisa uns dez para segurar! – Olha para os lados e baixa a voz: — Vocês sabem o que é que ele fez comigo? Não sabem?
— Conta? Ah, conta!
Ismênia não queria outra coisa. Cercada de amigas interessadíssimas, resumiu o episódio:
— Foi o seguinte: ele cismou que eu tinha dado pelota para o Nemésio. E não conversou: me sentou a mão, direitinho!
— E tu?
Ergueu o rosto, feliz, envaidecida da bofetada:
— Eu vi estrelas!
Houve um silêncio e, ao mesmo tempo, um arrepio intenso naquelas meninas. Pareciam ter despeito, inveja, da agressão que a outra sofrera. Ismênia piscou o olho:
— Eu gosto de homem, homem. Escreveu, não leu, o pau comeu. Senão, não tem graça. Sou assim.
O Violento
Chamava-se Sinval, o namorado de Ismênia. À primeira vista, causava até má impressão. Faltava-lhe a base física da coragem. Era baixo, mirrado, um peito fundo de tísico, braços finos e mãos pequenas, de unhas tratadas. Custava a crer que esse fraco fosse um violento. Todavia, estava lá o testemunho de Ismênia, que, batendo no peito, repetia: “Eu apanhei! Eu!”. Acontece que entre as colegas presentes estava Silene, amiga e confidente de Ismênia. E Silene foi justamente a que se impressionou mais com o episódio. Conhecia vagamente Sinval e a sensação que ficara, de sua figura, foi a de um rapaz como há milhares, como há talvez milhões. De repente sabe que esse cavalheiro, de aparência tão insignificante, bate em mulheres. Sem dizer nada a ninguém, experimenta uma crispação de asco e deslumbramento. Mais tarde, em casa, com a mãe e as irmãs, diz o seguinte:
— Eu acho que, se um homem me esbofeteasse, eu dava-lhe um tiro no boca!
A Doce Pequena
Mentira. Não daria tiro na boca de ninguém. Impossível desejar-se uma alma mais doce, terna e tão incapaz de violência, de maldade. Mesmo sua exaltação fazia pensar na cólera de um passarinho. Durante três dias, não pensou noutra coisa. E pasmava que Ismênia se vangloriasse da bofetada, como se de uma medalha, uma condecoração. No quarto dia, não resiste. Apanha o telefone e liga para o emprego do Sinval. Queria apenas passar um trote, e nada mais. Do outro lado da linha, porém, Sinval, caricioso, mas irredutível, exigia:
— Se não disser o nome, eu desligo.
Ia recuar. Mas deu, nela, uma coragem súbita. Identificou-se: “Sou eu, Silene”. Arrependeu-se imediatamente depois de ter dito. Tarde, porém. E já Sinval, transfigurado, exclamava:
— Silene? Não é possível, não pode ser!
— Sou sim.
E ele:
— Então houve transmissão de pensamento! No duro que houve! Imagine que eu estava pensando em você, neste minuto! Agora mesmo!
Foi por aí além. Transpirando de sinceridade, contou que gostava dela em silêncio, há muito tempo. Com o coração disparado, a pequena indaga: “E Ismênia?”. Foi quase brutal:
— Ismênia é uma brincadeira, um passatempo, nada mais. Você, não. Você é outra coisa. Diferente!
Espantada com essa veemência, Silene quis duvidar. Então, emocionado, ele dramatiza:
— Te juro, pela minha mãe, que é a coisa que mais prezo na vida. Te juro que é pura verdade!
Drama
Silene despediu-se, afinal, com as pernas bambas. O simples fato de ter ligado já a envergonhara como uma deslealdade. Afinal, era amiga de Ismênia e… Pior do que tudo, porém, fora identificar-se. Durante o resto do dia, não fez outra coisa senão perguntar, de si para si: “E agora, meu Deus?”. No telefone, aceitara o convite de Sinval para um encontro no dia seguinte. Mas o sentimento de culpa não a largou, senão no momento em que decidiu: “Não vou, pronto. Não vou e está acabado”. Mas foi. No dia seguinte, pontualmente, estava no local combinado, transida de vergonha. Sinval, num interesse evidente, profundo, foi ainda mais decisivo do que na véspera. Disse coisas deslumbrantes, inclusive, textualmente, o seguinte:
— Te vi, no máximo, umas oito vezes, dez, talvez. Falei contigo pouquíssimo. Mas, assim ou assado, o fato é que te amo, te amo e te amo!
Apaixonada
Ela acreditou. E acreditou porque se passara o mesmo com seu coração. Apaixonara-se, de uma dessas paixões definitivas, reais e mortais. Continuou a encontrar-se com o ser amado, às escondidas. Só não era mais feliz porque pensava na outra. De noite, no quarto, especulava: “No dia em que Ismênia souber…”
Chegou esse dia. E foi, entre as duas, uma cena desagradabilíssima. Sem papas na língua, Ismênia disse-lhe as últimas: “Tu és mais falsa do que Judas”. Branca, o lábio inferior tremendo, Silene sentia-se incapaz de uma reação. A outra terminou, numa espécie de maldição:
— Hás de apanhar muito nessa cara!
Ciúmes
O incidente foi lamentável por um lado e bom por outro. Lamentável, pelo escândalo, pelo constrangimento. Bom, porque esclareceu de vez a situação. Excluída Ismênia, oficializou-se o romance. Os dois puderam exibir, ostentar, em toda a parte, o imenso carinho em que se consumiam. Começaram a freqüentar festas. E, então, surpresa e vagamente inquieta, Silene descobriu o seguinte: Sinval não se incomodava que ela dançasse com todo mundo. Estranhou e passou a interpelar o namorado.
— Você não tem ciúmes de mim?
— Não.
Admirou-se:
— Por quê?
E ele:
— Porque te amo.
Devia dar-se por satisfeita. E, no entanto, sua reação foi outra: estava descontente. Dias depois, suspira: “Eu preferia que tivesses ciúmes de mim”. Sinval achou graça: “Ué!”. Ela, sentindo-se irremediavelmente infantil, repete o que já ouvira, não sei onde: “Sem ciúmes não há amor!”. O rapaz passou-lhe um sermão: “Parece criança!”. Até que, certa vez, a garota resolve ir mais longe. Pergunta ousadamente: “E seu eu te traísse? Tu farias o quê?”. Respondeu, sóbrio:
— Te perdoaria.
— E se eu voltasse a trair?
Foi absoluto:
— Se continuasses traindo, eu continuaria perdoando.
Desfecho
Mas este diálogo, impudente, perturbador, deveria marca-la, e muito. A partir de então, foi outra alma, outra mulher. Era uma menina de modos suaves e bonitos. E, subitamente, passou a chamar a atenção de todo mundo, com atitudes desagradáveis, de escândalo. Nas festas, dançava com o rosto colado; e houve um baile em que bebeu tanto que teve que ser carregada, em estado de coma. Por outro lado, torturava o pobre Sinval, desacatando-o na frente de todo mundo. Ele, serenamente, com uma mesura à Luís XV, submetia-se às piores desconsiderações, incapaz de um revide. Até que, numa festa, ela se cansou desse inofensivo. Na sua cólera, humilhou-o:
— Você não é homem! Se fosse homem, eu não faria de você gato e sapato!
Ela bebera, outra vez, além da conta. Talvez por isso ou por outro motivo qualquer, Sinval limitou-se a sugerir: “Vamos, meu anjo?”. Mas em casa, sozinha, ela imergia numa ardente meditação. Uma noite, vão a uma outra festa. E lá Silene superou todas as leviandades anteriores. Quase à meia-noite, de braço com o par acidental, vai para o jardim. Sinval espera vinte minutos, meia hora, uma hora. E não se contém mais: vai procurá-la. O par, assim que o viu, pigarreou, levantou-se e desapareceu. Silene ergue-se também. Com um meio-sorriso maligno, anuncia: “Ele me beijou”. Sinval não disse uma palavra: derruba a noiva com uma tremenda bofetada. Ela cai longe, com os lábios sangrando. Enquanto ele a contempla e espera, a pequena, de rastros, com a boca torcida, aproxima-se. Está a seus pés. E. súbito, abraça-se às suas pernas, soluçando:
— Esperei tanto por essa bofetada! Agora eu sei que tu me amas e agora eu sei que posso te amar!
Passou. Mas nos seus momentos de carinho, e quando estavam a sós, ela pedia, transfigurada: “Me bate, anda! Me bate!”. Foram felicíssimos.”
Mesmo sem gostar de bofetadas, eu vivo felicíssima. E ainda gosto de ler o Nelson Rodrigues. O que tenho medo é que a Iriny leia este texto e comece um processo para censurar este grande escritor pernambucano, ou até mesmo exigir, como ela está fazendo com o autor de Fina Estampa, que entre uma linha e outra do texto, os editores e publicadores do Nelson, agora, tenha que colocar um telefone do Disque Mulher, e anunciando que agora existe a Lei Maria da Penha.
A Celeste de Fina Estampa, a Janete e a Valéria de Zorra Total, a Gisele Budchen do comercial, agora teriam a companhia da Silene do Nelson Rodrigues. E a Iriny continuaria sua corrida em direção ao Prêmio de Publicidade Iriny (veja aqui). E ainda vi um texto (que depois comento) do PT defendendo-a como sua musa Iriny. Vão se frustar com esta defesa, pois, estou absolutamente certa, de que, igual à Silene, ela está felicíssima. Ela gosta mesmo é de apanhar. Ela está tentando encontrar um Sinval por aí... De preferência do PT.
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