Por Nelson Rodrigues (*)
Contei o episódio da escola pública, com a professora caçando nos meus cabelos. Eis a verdade: — os piolhos me humilharam e as lêndeas, não. Várias gerações já rolaram. E, até hoje, acho “lêndea” um nome bonito, como se fosse de madre-pérola. Foi mais ou menos por essa época que eu tive um dos grandes medos de minha vida.
Apontava a primeira estrela. Cheguei na janela e vi, em cima do meiofio, dois meninos descalços. Um deles era filho de uma viúva, que passava e lavava para fora. Minha tia Yayá já me soprara: — “Não brinca com aquele menino, não”. Ainda fiz meu espanto. — “Por que, Yayá?”. Eu a chamava de Yayá e não de titia. Enfiando a linha na agulha, suspira: “É doente. Doente”. Entre parênteses, a mãe do menino era a única magra da rua. E ele tinha numa das faces uma mancha feia, cor da orquídea e da gangrena.
Na tarde de uma única estrela, o garoto estava dizendo: — “Eu não sou leproso. Mamãe me disse que eu não sou leproso”. Eu estava quieto, na janela; e, de repente, comecei a ter medo. Na minha infância, tudo que acontecia parecia um vaticínio contra mim. Certa vez, eu saí com meu irmão Roberto. E vimos na rua São Francisco Xavier, rente ao meio-fio, um garoto atropelado. Lá estava, a seu lado, a chama de uma vela. Em volta, gente espiando. Uma folha de jornal cobria o atropelado da cintura para cima, tapando o rosto.
Senti, então, que meu destino estava ali. Voltamos para casa, eu e Roberto. Era como se a chama estivesse sonhando por mim. Cheguei em casa e aquilo não me saía da cabeça. Fui para o quintal; junto ao tanque, imaginei que um dia eu estaria no asfalto, rente ao meio-fio. Quando ouvi o menino — “Não sou leproso” — achei que ali estava insinuado também um vaticínio para mim. (E a mãe, que lavava e passava para fora, repetindo: —
“Você não é leproso, meu filho”.)
Eis o que eu queria dizer: — nunca, na minha vida, tive tanta vontade de ser amigo de alguém. Falei em medo; mas foi outro sentimento, talvez de espanto ou nem isso. O que doeu em mim, espantosamente, foi a vergonha do menino, a vergonha de ser leproso. Agora sei que não tive medo, nenhum, nenhum. Uma pena tão grande, tão dilacerada.
Depois o menino, sozinho, voltou para o quarto (a mãe morava num quarto de casa de cômodos). Nunca mais o vi. Na minha infância, as pessoas sumiam, como se jamais tivessem existido. Lembro-me de mendigos, cegos, meninas, que eu via uma vez e para sempre desapareciam. Só mais tarde eu soube que a viúva, mãe do menino, casara-se com um preto, o Tião. Do garoto nunca mais se falou.
O preto Tião trouxe de volta a pergunta de Sartre — “E os negros? Onde estão os negros?”. Já expliquei que temos um, o Abdias do Nascimento. Dirá alguém que há outro, o Pelé. Engano. É o menos preto dos brasileiros. Ao vê-lo sentado, ao lado do ministro Magalhães Pinto, no Itamaraty, senti uma ilusão visual. Ninguém mais branco do que Pelé e cada vez mais branco. Eu ouço brancas lindas, dizendo: — “Com Pelé, eu me casava”. O próprio craque podia dizer, como na anedota: “Eu também já fui preto”.
Quando ele se casou, o Abdias do Nascimento veio falar comigo. Arrancou das próprias entranhas o protesto inútil: — “Devia ter-se casado com uma preta”. Mas, se Pelé não é negro, quem o será, além do Abdias? Enquanto Sartre cuspia mais um caroço de jabuticaba, alguém poderia informar: — “Parece que houve aí um preto, um tal de José do Patrocínio”. Anterior ao Abdias, não teve, como este, a explosão do ódio racial. Pelo contrário. A cor só lhe interessava como retórica. Sim, Patrocínio a punha a serviço de suas frases.
Houve, porém, um momento em que era vantajoso ser negro. Falo de toda a campanha da Abolição. O negro era então a moda obsessiva. De mais a mais, nunca se viu uma época tão oratória. Por tudo se fazia um discurso, por tudo se fazia um comício. Lembro-me de uma das tiradas mais bem sucedidas de Patrocínio. Eis o que ele soluçou: — “Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes de minha pátria!”. A cor fazia um fundo ideal para a retórica. Era um negro, filho de escrava, que berrava isso. O efeito plástico e auditivo foi total.
E, durante toda a campanha, o “Tigre da Abolição” foi um negro confesso. De vez em quando, porém, Patrocínio tremia. (No fundo, e mesmo em pleno triunfo verbal, era um preto contrafeito e ressentido.) Nas suas depressões raciais, os amigos, perdidos na massa, faziam-lhe as provocações estimulantes. Um. deles, Bilac, gritava: — “Negro burro!”. E um outro: — “Negro sem-vergonha!”. E um terceiro: — “Com saudades do chicote, hein, negro?”. A humilhação era o afrodisíaco verbal infalível.
Ah, o bom crioulo! Andava sempre atrás do efeito cênico. Um dia, fez o seguinte quadro plástico: — caiu de joelhos, aos pés da princesa Isabel, e beijou-lhe a mão, chorando. (Não sei se chorou; mas vá lá.) Houve um estarrecimento nacional. Ninguém lhe aplaudiu o arrebatamento (a não ser os presentes, por vil adulação). Seu ato não pareceu, a ninguém, sublime. O negro aviltara a sua raça, ao portar-se com essa humildade de cachorro velho.
A Abolição foi uma catástrofe para o pobre Zé do Patrocínio. Sumia o pretexto histórico para a sua fúria tribunícia. Era o “Tigre” sem função, sem destino. E, assim, veio de queda em queda, até a miséria feroz. Um dia, Coelho Neto decide: — “Vou visitar Patrocínio”. Tomou um trem e lá se foi para o subúrbio, onde o velho ruminava as suas nostalgias inúteis. O “Zé do Pato” era o diretor de jornal sem jornal, era o orador sem comício, o orador que emudecia antes de morrer. Coelho Neto voltou e tão impressionado que escreveu um artigo patético. Descreveu as privações do “Ex-Tigre da Abolição”. Não tinha uma moeda no bolso. Com pouco mais, teria de viver de esmolas como um ceguinho. Que se saiba, a única conseqüência prática do artigo de Coelho Neto foi esta: o padeiro de Patrocínio cortou-lhe o crédito.
A morte daria ao velho negro o seu último momento de grande homem. Foi um enterro gigantesco, pago pelo Estado. Era a época em que o fato de morrer promovia qualquer um. A vida eterna ainda não estava liquidada; e um caixão de quinta classe era cumprimentado com a mesma solenidade. O enterro desfilou lentamente, teve um itinerário caprichoso, contornando as praças, atravessando as avenidas principais, por debaixo das sacadas apinhadas. Ah, Patrocínio foi o cadáver de cor mais velado, mais chorado, mais florido do Brasil.
(*) Publicado no Livro: O Óbvio Ululante - Primeiras Confissões [19/12/1967]
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