Na cidade do Rio de Janeiro são muitos os monumentos e
lugares históricos da época de D. João VI abandonados ou mal identificados, mas
nada se compara ao que aconteceu com o Mercado do Valongo. O maior entreposto
negreiro das Américas sumiu do mapa sem deixar vestígios, como se jamais
tivesse existido. Sua localização é ignorada nos mapas de ruas e nos guias
turísticos. Situada entre os bairros da Gamboa, da Saúde e do Santo Cristo, a
antiga Rua do Valongo até mudou de nome. Hoje chama-se Rua do Camerino. Ao
final dela, em direção à Praia Mauá, uma ladeira chamada Morro do Valongo, sem
nenhuma placa, monumento ou explicação, é a única referência geográfica que
restou. É como se a cidade, de alguma forma, tentasse esquecer o velho mercado
negreiro e a mancha que ele representa na história do Brasil. Esforço inútil,
porque bem ali perto fica o Sambódromo, onde, em todo Carnaval, uma escola
insiste em lembrar que a escravidão faz parte da memória dos cariocas e
brasileiros.
Em 1996, a história do Valongo emergiu do subsolo de forma
abrupta. Um casal de moradores da Rua Pedro Ernesto, 36, no bairro da Gamboa,
decidiu fazer reformas na sua casa, construída no início do século XVIII.
Durante as escavações, achou em meio ao entulho centenas de fragmentos de ossos
misturados a cacos de cerâmica e vidro. Eram os vestígios do até então
desconhecido cemitério dos Pretos Novos. Ali, duzentos anos atrás, se
enterravam os escravos recém-chegados da África e mortos antes de serem vendidos.
Até o começo de 2007, os arqueólogos haviam reunido 5563 fragmentos de ossos.
Pertenciam a 28 corpos de jovens do sexo masculino, com idades entre 18 e 25
anos. Todos eles apresentavam sinais de cremação. O motivo é óbvio: no Rio de
Janeiro de D. João VI só os brancos tinham o privilégio de serem sepultados em
igrejas, próximos de Deus e do paraíso celeste, segundo se acreditava na época.
Os escravos eram jogados em terrenos baldios ou valas comuns, nas quais se
atirava fogo e, depois, uma camada de cal.
Quando a corte portuguesa chegou ao Brasil, navios negreiros
vindos da costa da África despejavam no Mercado do Valongo entre 18000 e 22000
homens, mulheres e crianças por ano. Permaneciam em quarentena, para serem
engordados e tratados das doenças. Quando adquiriam uma aparência mais saudável, eram comercializados da mesma
maneira como hoje boiadeiros e pecuaristas negociam animais de corte no
interior do Brasil. A diferença é que, em 1808, a “mercadoria” destinava-se a
alimentar as minas de ouro e diamante, os engenhos de cana-de-açúcar e as
lavouras de algodão, café, tabaco e outras culturas que sustentavam a economia
brasileira.
O desembarque, a compra e a venda de escravos faziam parte
da rotina da colônia brasileira havia quase três séculos. Para os estrangeiros
que, pela primeira vez, foram autorizados a visitar o Brasil depois da chegada
da corte, era sempre uma visão constrangedora. Ao visitar o local em 1823,
Maria Graham, viajante inglesa e amiga da imperatriz Leopoldina, registrou no
seu diário: 1º de maio de 1823: vi hoje o Valongo. É o mercado de escravos do
Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de negros
cativos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos
colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam
sentadas, com a cabeça raspada, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de
sarna recente. Em alguns lugares, as pobres criaturas jaziam sobre tapetes,
evidentemente muito fracas para sentarem-se.
Outro estrangeiro, o cônsul inglês James Henderson,
descreveu assim o desembarque dos escravos no porto do Rio de Janeiro: Os
navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível das
misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras
tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e esquálidos
são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a esse
tipo de cena. Muitos deles, enquanto caminham dos navios até os depósitos onde
ficarão expostos para venda, mais se parecem com esqueleto ambulantes, em
especial as crianças.
A pele, que de tão frágil parece ser incapaz de manter os
ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os portugueses chamam de
sarna.
Um terceiro relato é o do diplomata inglês Henr Chamberlain.
Ele conta como era a compra de um escravo no Valongo: Quando uma pessoa quer
comprar um escravo, ela visita os diferentes depósitos, indo de uma casa a
outra, até encontrar aquele que lhe agrada. Ao ser chamado, o escravo é apalpado
em várias partes do corpo, exatamente como se faz quando se compra um boi no
mercado. Ele é obrigado a andar, a correr, a esticar seus braços e pernas
bruscamente, a falar, a mostrar a língua e os dentes. Esta é a forma
considerada correta para avaliar a idade e julgar o estado de saúde do escravo.
Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 10 milhões de escravos
africanos foram vendidos para as Américas. O Brasil maior importador do
continente, recebeu quase 40% desse total, algo entre 3,6 milhões e 4 milhões
de cativos, segundo as estimativas aceitas pela maioria dos pesquisadores. O
historiador Manolo Florentino Garcia estima que 850000 escravos desembarcaram
no porto do Rio de Janeiro durante o século XVIII, o equivalente à metade de
todos os negros cativos trazidos para o Brasil nesse período. Com a chegada da
corte e o aquecimento dos negócios na colônia, o tráfico aumentou de forma
exponencial. O número de escravos desembarcados no Rio saltou de 9689 em 1807
para 23230 em 1811 — um aumento de duas vezes e meia em quatro anos. A média
anual de navios negreiros atracados no porto também aumentou de 21 no período
anterior a 1805 para 51 depois de 1809.
“Por volta de 1807, o trabalho escravo no Brasil tinha se
tornado um deus econômico, com o comércio escravo como seu poderoso braço
direito. Tentar suprimir o tráfico [...] era uma atividade vã”, avaliou o
historiador Alan K. Manchester.
O tráfico de escravos era um negócio gigantesco, que
movimentava centenas de navios e milhares de pessoas dos dois lados do Atlântico.
Incluía agentes na costa da África, exportadores, armadores, transportadores,
seguradores, importadores, atacadistas que revendiam no Rio para centenas de
pequenos traficantes regionais, que, por sua vez, se encarregavam de
redistribuir as mercadorias para as cidades, fazendas, minas do interior do
país.
Esses pequenos traficantes varejistas eram conhecidos como
comboieiros. Em 1812, metade dos trinta maiores comerciantes do Rio de Janeiro
se constituía de traficantes de escravos. Os lucros do negócio eram
astronômicos. Em 1810, um escravo comprado em Luanda por 70000 réis, era
revendido no Distrito Diamantino, em Minas Gerais, por até 240000 réis, ou três
vezes e meia o preço pago por ele na África. O comprador ideal tinha outro
escravo, que servia de garantia no caso do não pagamento da dívida. Só em
impostos, o Estado recolhia cerca de 80000 libras esterlinas por ano com o
tráfico negreiro. Seria hoje o equivalente a 18 milhões de reais.
Apesar de muito lucrativo, tratava-se de um negócio que envolvia
grandes riscos. Oitenta por cento dos cativos vinham do Congo, de Angola ou
Moçambique. A taxa de mortalidade no percurso até o Brasil era altíssima. Na
África, o escravo chegava primeiro às mãos dos mercadores nativos geralmente
como prisioneiro de guerra ou oferecido como pagamento de tributo a um chefe
tribal. Cabia a esse mercador levá-lo até o litoral, onde seria comprado pelos
agentes dos traficantes portugueses. Até o início do século XVIII, essas
compras eram feitas com barras de ouro contrabandeadas. Em 1703, a Coroa
expediu alvará que proibia o uso de metal precioso nas transações e punia os
transgressores com o confisco dos bens e degredo de seis anos em São Tomé. A
partir daí, a compra de escravos passou a ser paga com produtos da colônia, em
especial tecidos, tabaco, açúcar e cachaça, além de pólvora e armas de fogo.
Na África, cerca de 40% dos negros escravizados morriam no
percurso entre as zonas de captura e o litoral. Outros 15% morreriam na
travessia do Atlântico, devido às péssimas condições sanitárias nos porões dos
navios negreiros. As perdas eram maiores nas cargas que vinham de Moçambique e
outras regiões da África oriental. Da costa atlântica, uma viagem até o Brasil
durava entre 33 e 43 dias. De Moçambique, no Oceano Índico, até 76 dias. Por
fim, ao chegar ao Rio de Janeiro, entre 10% e 12% dos desembarcados pereciam em
depósitos, como os do Mercado do Valongo, antes de serem vendidos. Em resumo,
de cada cem negros capturados na África, só 45 chegavam ao destino final. Significa
que, de dez milhões de escravos vendidos nas Américas, quase outro tanto teria
morrido no percurso, num dos maiores genocídios da história da humanidade.
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(*) Reproduzimos hoje e nos próximos dias um trechos do
livro 1808 do jornalista e historiardor Laurentino Gomes, sobre a escravidão no
Brasil. Uma forma de não repetir os erros é sempre está lembrando do passado.
(LP)
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