terça-feira, 15 de maio de 2012

A Semana da Escravidão - O transporte (*)




Um risco adicional do tráfico eram os naufrágios e os piratas que infestavam o Atlântico Sul. Dos 43 navios que transportavam escravos para a Companhia do Grão-Pará e Maranhão durante a segunda metade do século XVIII, nada menos que catorze, ou um terço do total, naufragaram. Na década de 1820, os jornais do Rio de Janeiro registraram dezesseis ataques de piratas a navios negreiros, a maior parte de corsários norte-americanos. Um desses navios, o Estrela do Mar, foi roubado ainda no porto de Malembo. Perdeu todos os 213 escravos que tinha a bordo antes mesmo de iniciar a travessia.

Os escravos a bordo dos navios negreiros eram considerados uma carga como outra qualquer. Um exemplo. No dia 6 de setembro de 1781, o navio inglês Zong, de Liverpool, saiu da África rumo à Jamaica com excesso de escravos a bordo. Em 29 de novembro, no meio do Atlântico, sessenta negros já haviam morrido por doenças, falta de água e comida. “Acorrentados aos pares, perna direita com perna esquerda e mão direita com mão esquerda, cada escravo tinha menos espaço do que um homem dentro de um caixão”, escreveu F. O. Shyllon, autor de Black slaves in Britain. Temendo perder toda a carga antes de chegar ao destino, o capitão Luke Collingwood decidiu jogar ao mar todos os escravos doentes ou desnutridos. Ao longo de três dias, 133 negros foram atirados da amurada, vivos. Só um conseguiu escapar e subir novamente a bordo. O dono do navio, James Gregson, pediu indenização à seguradora pela carga perdida. A empresa de seguros, em Londres, recorreu à Justiça. Pelas leis inglesas, se o negro morresse a bordo, por maus-tratos, fome ou sede, a responsabilidade seria do capitão do navio. Se caísse no mar o seguro cobriria. Nesse caso, a Justiça decidiu que a seguradora tinha razão. O capitão era culpado pelas mortes. O caso abriu os olhos dos britânicos para a crueldade do tráfico negreiro e se tornou um ícone do movimento abolicionista no mundo todo.

No Rio de Janeiro, os traficantes de escravos eram empresários proeminentes, reverenciados e respeitados. Tinham influência na sociedade e nos negócios do governo. Na corte de D. João, eles se destacavam entre os grandes doadores, recompensados com honrarias e títulos de nobreza. Um caso bastante ilustrativo é o de Elias Antônio Lopes, o traficante que, em 1808, presenteou o príncipe regente com o palácio que havia construído na chácara de São Cristóvão. Natural da cidade do Porto, Elias chegou ao Rio de Janeiro no final do século XVIII. Ao doar sua própria casa a D. João, Elias fez um ótimo investimento. Ainda em 1808, recebeu do príncipe a comenda da Ordem de Cristo e a propriedade do ofício de tabelião e escrivão da Vila de Parati, em retribuição ao “notório desinteresse e demonstração de fiel vassalagem, que vem de tributar a minha Real Pessoa”. No mesmo ano, o príncipe concedeu-lhe o posto de deputado da Real Junta do Comércio. Em 1810, foi sagrado cavaleiro da Casa Real e agraciado com a perpetuidade da Alcaideria- Mor e do Senhorio da Vila de São José Del Rei, na comarca do Rio de Janeiro. Também foi nomeado corretor e provedor da Casa de Seguros da Praça da Corte. Por fim, tornou-se responsável pela arrecadação de impostos em várias localidades. Ao morrer, em 1815, era dono de 110 escravos e de fortuna calculada em 236 contos de réis, distribuída em palácios, fazendas, ações do Banco do Brasil e navios negreiros.

Despejados aos milhares no porto do Rio de Janeiro pelos navios negreiros, os escravos eram um bem relativamente barato e acessível mesmo às famílias de classe média da corte de D. João. James Tuckey, oficial da Marinha britânica, relatou que, em 1803, um negro adulto era vendido por 40 libras no Rio de Janeiro. Seria hoje o equivalente a cerca de 10000 reais, menos da metade do preço de um carro popular. Uma mulher custava um pouco menos, cerca de 32 libras. Um garoto, 20 libras. Um negro que tivesse sobrevivido à varíola valia mais, porque já era imune à doença e, portanto, tinha chances de viver por mais tempo. “Comprei um negro por 93600 réis”, contou ao pai o arquivista Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, numa carta escrita no dia 21 de julho de 1811, o ano de sua chegada ao Rio de Janeiro. Esse valor correspondia na época a pouco mais de 20 libras esterlinas, preço de um escravo adolescente — numa outra carta, Marrocos se refere ao seu escravo como “o meu moleque”.

Uma forma muito comum de avaliar o preço de um escravo no Rio de Janeiro era compará-lo ao de um animal de carga. Do ponto de vista dos seus donos, a comparação fazia todo o sentido: ambos se destinavam à mesma atividade. Uma besta adestrada custava no Rio de Janeiro cerca de 28000 réis, valor que, segundo o historiador Almeida Prado, o botânico austríaco Karl Friedrich Phillip von Martius teria pago por um animal em 1817. Ou seja, o preço do escravo comprado pelo arquivista Marrocos era equivalente ao de três mulas de carga. Curiosamente, essa mesma paridade de preço entre um escravo e um animal era observada um século antes nos relatos do padre jesuíta João Antônio Andreoni, autor de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, um clássico da história brasileira. Andreoni, que escreveu o livro sob o pseudônimo de André João Antonil, relata que, em 1711, “um negro bem feito, valente e ladino”, custava em Minas Gerais trezentas oitavas de ouro, três vezes o preço de “um cavalo sendeiro”.

Escravos eram um patrimônio contabilizável, um ativo a ser explorado ao máximo em busca de retorno. No Rio de Janeiro, toda pessoa com alguma projeção social tinha negros cativos. Relato de 1782 do viajante espanhol Juan Francisco de Aguirre registra que os trinta monges do Convento de São Bento, então o mais rico do Brasil, viviam dos rendimentos proporcionados por “quatro engenhos de açúcar, que empregam 1200 escravos, e de algumas casas de aluguel espalhada pela cidade”. Segundo Aguirre, também os monges beneditinos e os padres jesuítas possuíam escravos nessa época.

Alguns proprietários tinham mais escravos do que o necessário para suas atividades. Os cativos excedentes eram alugados a terceiros. Dessa forma, seus donos conseguiam um ganho extra. Havia até corretores especializados em intermediar esse tipo de negócio — num sistema parecido com o funcionamento atual das imobiliárias e locadoras de máquinas e automóveis. O valor do aluguel era inteiramente repassado ao dono do escravo, sem que o cativo participasse do ganho. “Todos os que conseguem adquirir uma meia dúzia de escravos passam a viver na mais completa ociosidade — explorando os rendimentos do trabalho dos seus negros — e a caminhar pela rua solenemente, com grande empáfia”, descreveu o inglês James Tuckey, em 1803. “Assim, qualquer pessoa com fumaças de nobreza podia alcançar proveitos dos trabalhos mais humildes sem degradar-se e sem calejar as mãos”, observou o historiador Sérgio Buarque de Holanda. O viajante alemão Ernst Ebel contou que, ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1824, alugou um negro por 700 réis ao dia — o equivalente a pouco menos de 30 reais atualmente. Insatisfeito com o serviço, demitiu-o depois de algum tempo e colocou um anúncio no Diário Fluminense procurando “uma negra que soubesse lavar e passar a ferro”. Conseguiu contratar uma “pretinha”, segundo sua própria definição, de dezesseis anos chamada Delfina, que lhe saía por 11000 réis mensais, sendo 6000 em dinheiro e o restante em comida e outras necessidades diárias. Por esse valor, que hoje eqüivaleria a aproximadamente meio salário mínimo, “eu dispunha de alguém que não somente me lavava a roupa como a consertava e, em caso de necessidade, entendia um pouco de cozinha, ficando em casa, de mais a mais, o tempo todo, para minha maior segurança”, escreveu Ebel.

Outra forma de escravidão que se desenvolveu, paralela ao trabalho de aluguel, foi o sistema de ganho. Eram aqueles escravos que, após fazerem o trabalho na casa de seus donos regulares, iam para as ruas em busca de atividade suplementar. Vendiam seu trabalho de forma avulsa, a diversos clientes, oferecendo serviços que poderiam durar um dia ou mesmo algumas horas. Era um sistema tão popular que existiam até casas de comércio especializadas no aluguel de escravos. Os escravos de ganho faziam de tudo: iam às compras, buscavam água, removiam o lixo, levavam e traziam recados e serviam de acompanhantes para as mulheres quando iam à igreja. O inglês John Luccock conta que eram usados até para rezar Ave-Maria, em frente aos oratórios espalhados pela cidade na intenção de seus senhores.

No final do dia, os escravos de ganho repassavam parte do dinheiro aos seus donos. A quantia era previamente estabelecida. O escravo que a ultrapassasse podia ficar com a diferença. Quem não alcançasse a meta, era punido. “Essa forma de trabalho era conveniente tanto para o proprietário quanto para o escravo”, escreveu a historiadora Leila Mezan Algranti, uma autoridade no assunto. “O senhor não se preocupava com a ocupação de seus empregados, nem com seu controle. Os negros, por sua vez, viviam soltos pelas ruas gozando de uma liberdade jamais sonhada por seus semelhantes no campo.” Segundo ela, o sistema era rentável, pois havia “senhores” que viviam apenas do trabalho de um ou dois “negros de ganho”. Ao mesmo tempo, havia escravos que, no sistema de ganho, não só conseguiam pagar a quantia combinada com seus senhores como acabavam acumulando dinheiro suficiente para comprar sua liberdade.

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(*) Reproduzimos hoje e nos próximos dias um trechos do livro 1808 do jornalista e historiardor Laurentino Gomes, sobre a escravidão no Brasil. Uma forma de não repetir os erros é sempre está lembrando do passado. (LP)

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