Por Reinaldo Azevedo (**)
O Supremo Tribunal Federal deve retomar hoje o julgamento
sobre as cotas raciais nas universidades públicas. Eis mais um tema que
desperta paixões e que se abre a todo tipo de feitiçaria interpretativa da
Constituição. Não há juízo neste mundo, NÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO AO MENOS, que
consiga dar sentido alternativo ao que vai no caput do Artigo 5º da
Constituição, uma cláusula pétrea:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade (…)”
Causa finita est. Ou deveria ser ao menos. “Todos” quer
dizer “todos” — brancos, mestiços, pretos, amarelos, vermelhos… Se as circunstâncias, em razão de uma gama
enorme de fatores, torna desiguais os homens, desiguais eles são na vida
social. E a política existe justamente para que se organizem e busquem viver na
prática essa igualdade. Não será DESIGUALANDO-OS DIANTE DA LEI E JOGANDO FORA A
CONSTITUIÇÃO que se vai produzir igualdade. O resto é o que chamo feitiçaria
interpretativa. Em 2008, o ministro Ayres Britto, agora presidente do tribunal,
fez uma afirmação de apelo supostamente poético, que seria endossada por
qualquer representante de modelos totalitários do século 20, a saber:
“A verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais”.
Não! Essa é só a verdadeira desigualdade. O jogo de palavras
esconde um conceito terrível: alguns homens estão — os considerados, em
princípio, “desiguais” — acima ou fora das leis. Repete, assim, na prática, o
primado daquela tal Associação Juízes para a Democracia. O que precisa ser
melhorado no Brasil é a escola pública. Ainda que fosse verdade — existem a
respeito mais mistificações do que dados — que o regime de cotas amplia o
número de negros nas universidades, isso não poderia se dar suprimindo direitos
de terceiros, tenham que cor tiverem. Há três ações no Supremo. Uma delas
destroça o aspecto supostamente virtuoso da frase da Britto. Explico.
O estudante Giovane Pasqualito Fialho, branco, foi reprovado
num vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, embora tenha tido
nota superior à de alunos que ingressaram pelo regime de cotas. A frase do
ministro Britto, que pretende chamar de “desiguais” os negros, sugerindo que a
“desigualdade” de tratamento é necessária para torná-los, então, iguais, ignora
que uma outra desigualdade perante a lei se produziu: gente como Fialho teve
seu direito suprimido. Entender que um negro ou mestiço tem direito especial a
uma vaga, mesmo com nota inferior ao candidato em questão, faz de Fialho, que é
branco, o responsável por uma desigualdade que não foi produzida nem por ele
nem pelo vestibular da UFRGS, certo? Por que Fialho deveria pagar pessoalmente
por isso? Porque é branco? Isso é democracia racial, ministro Britto?
Só há uma resposta para isso, a saber: o bem geral que a lei
de cotas produziria, infelizmente, faria mesmo algumas injustiças pontuais no
meio do caminho. É outro mimo do pensamento totalitário: alguns terão de pagar
pela grandeza e pelo triunfo de algumas ideias,
ainda que com seus direitos individuais. Não há como respeitar a
Constituição e aceitar as cotas raciais ao mesmo tempo.
Lembram-se do
casamento gay
Embora a Constituição seja explícita AO ESPECIFICAR que
união civil é aquela celebrada entre homem e mulher — e, salvo engano, homem é
homem, e mulher e mulher, pouco importando a destinação que deem àquilo que
Britto chamou o “seu regalo” —, o que fez o Supremo (e por unanimidade)? Apelou
ao Artigo 5º da Constituição e determinou que o fundamento da igualdade obrigava
a reconhecer a união civil também entre homossexuais. E o próprio Britto foi
entusiasta dessa tese.
Muito bem! Mesmo contra a letra explícita de um artigo,
apela-se ao fundamento geral da igualdade para aceitar a união civil
homossexual. Na hora de decidir sobre as cotas, o que é igualdade no artigo 5º
deve ser entendido como “tratar desigualdade os desiguais”? Vale para um caso
(mesmo contra a literalidade de um artigo), mas não vale para outro? Muito bem:
no argumento de Britto, recorre-se ao tratamento desigual diante da lei para
tornar, então, nas suas palavras, os negros iguais aos brancos. Ocorre que esse
raciocínio tem uma sobra lógica: os brancos preteridos, embora com nota maior,
são, então, iguais a quem ou quê? Ainda que todo branco fosse herdeiro dos
escravocratas — inclusive os descendentes de imigrantes que vieram de lascar
nas lavouras de café ou na nascente indústria brasileira, enfrentando uma vida
maldita de privações —, deveriam pagar as, vá lá, faltas de seus ancestrais?
Que diabo de conceito jurídico é esse?
Manifesto
antirracialista
Em abril de 2008, 113 pessoas enviaram um manifesto aos
ministros do Supremo Tribunal Federal. Sou um dos signatários. O título é este:
“Cento e treze cidadãos antirracistas contra as leis raciais”. Abaixo,
transcrevo alguns trechos. A íntegra está
aqui.
Que fique claro: não tenho a menor esperança de que se vá fazer a coisa certa.
Essa é uma das questões que integram o rol das ações politicamente corretas.
Ter a ousadia de debatê-la já arma espíritos. É a “democracia” segundo o
entendimento de alguns… Bem, não será assim aqui, como vocês sabem muito bem.
Seguem trechos do manifesto.
(…)
Nós, intelectuais da sociedade
civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros
movimentos sociais, dirigimo-nos respeitosamente aos Juízes da corte mais alta,
que recebeu do povo constituinte a prerrogativa de guardiã da Constituição,
para oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem
política e jurídica da República.
Na seara do que Vossas
Excelências dominam, apontamos a Constituição Federal, no seu Artigo 19, que
estabelece: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. O
Artigo 208 dispõe que: “O dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e
da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.
(…)
Apresentadas como maneira de
reduzir as desigualdades sociais, as cotas raciais não contribuem para isso,
ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das
urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação. E,
contudo, mesmo no universo menor dos jovens que têm a oportunidade de almejar o
ensino superior de qualidade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas
apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem novas desigualdades:
- As cotas raciais exclusivas,
como aplicadas, entre outras, na Universidade de Brasília (UnB), proporcionam a
um candidato definido como “negro” a oportunidade de ingresso por menor número
de pontos que um candidato definido como “branco”, mesmo se o primeiro provém
de família de alta renda e cursou colégios particulares de excelência e o
segundo provém de família de baixa renda e cursou escolas públicas arruinadas.
No fim, o sistema concede um privilégio para candidatos de classe média
arbitrariamente classificados como “negros”.
- As cotas raciais embutidas no
interior de cotas para candidatos de escolas públicas, como aplicadas, entre
outras, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), separam os alunos
proveniente de famílias com faixas de renda semelhantes em dois grupos
“raciais” polares, gerando uma desigualdade “natural” num meio caracterizado
pela igualdade social. O seu resultado previsível é oferecer privilégios para
candidatos definidos arbitrariamente como “negros” que cursaram escolas
públicas de melhor qualidade, em detrimento de seus colegas definidos como
“brancos” e de todos os alunos de escolas públicas de pior qualidade.
(…)
Raças humanas não existem. A
genética comprovou que as diferenças icônicas das chamadas “raças” humanas são
características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil
genes estimados do genoma humano. A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos
níveis de radiação ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é
expressa em menos de 10 genes! Nas palavras do geneticista Sérgio Pena: “O fato
assim cientificamente comprovado da inexistência das ‘raças’ deve ser absorvido
pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais Uma postura
coerente e desejável seria a construção de uma sociedade desracializada, na
qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada. Temos de
assimilar a noção de que a única divisão biologicamente coerente da espécie
humana é em bilhões de indivíduos, e não em um punhado de ‘raças’.” (”Receita
para uma humanidade desracializada”, Ciência Hoje Online, setembro de 2006).
Não foi a existência de raças
que gerou o racismo, mas o racismo que fabricou a crença em raças. O “racismo
científico” do século XIX acompanhou a expansão imperial europeia na África e
na Ásia, erguendo um pilar “científico” de sustentação da ideologia da “missão
civilizatória” dos europeus, que foi expressa celebremente como o “fardo do
homem branco”.
(…)
A meta nacional deveria ser
proporcionar a todos um ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras
de acesso à universidade. Mas há iniciativas a serem adotadas, imediatamente,
em favor de jovens de baixa renda de todas as cores que chegam aos umbrais do
ensino superior, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação
das taxas de inscrição nos exames vestibulares das universidades públicas. Na
Universidade Estadual Paulista (Unesp), o Programa de Cursinhos
Pré-Vestibulares Gratuitos, destinado a alunos egressos de escolas públicas,
atendeu em 2007 a 3.714 jovens, dos quais 1.050 foram aprovados em concursos
vestibulares, sendo 707 em universidades públicas. Medidas como essa, que não
distinguem os indivíduos segundo critérios raciais abomináveis, têm endereço
social certo e contribuem efetivamente para a amenização das desigualdades.
(…)
A propaganda cerrada em favor
das cotas raciais assegura-nos que os estudantes universitários cotistas exibem
desempenho similar ao dos demais. Os dados concernentes ao tema são esparsos,
contraditórios e pouco confiáveis. Mas isso é essencialmente irrelevante, pois
a crítica informada dos sistemas de cotas nunca afirmou que estudantes cotistas
seriam incapazes de acompanhar os cursos superiores ou que sua presença
provocaria queda na qualidade das universidades. As cotas raciais não são um
distúrbio no ensino superior, mas a face mais visível de uma racialização
oficial das relações sociais que ameaça a coesão nacional.
A crença na raça é o artigo de
fé do racismo. A fabricação de “raças oficiais” e a distribuição seletiva de
privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da
sociedade o veneno do racismo, com seu cortejo de rancores e ódios. No Brasil,
representaria uma revisão radical de nossa identidade nacional e a renúncia à
utopia possível da universalização da cidadania efetiva.
*
Eis alguns dos 113 signatários da carta:
Aguinaldo Silva, Alba Zaluar, Antonio Cícero, Bolivar
Lamounier, Caetano Veloso, Demétrio Magnoli, Edmar Lisboa Bacha, Eduardo
Giannetti, Eduardo Pizarro Carnelós, Eunice Durham, Ferreira Gullar, Gerald
Thomas, Gilberto Velho, João Ubaldo Ribeiro, José Augusto Guilhon Albuquerque,
José de Souza Martins, Lourdes Sola, Luciana Villas-Boas, Lya Luft, Maria
Sylvia Carvalho Franco, Nelson Motta, Reinaldo Azevedo, Roberto Romano da
Silva, Ruth Correa Leite Cardoso, Wanderley Guilherme dos Santos e Yvonne
Maggie.
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(*) O título origina do texto é: SUPREMO RETOMA HOJE [25.04.2012] JULGAMENTO SOBRE COTAS RACIAIS. NÓS, OS ANTIRRACISTAS, TEMOS O DEVER DE COMBATER A RACIALIZAÇÃO DO BRASIL.
(**) Publicado no Blog do Reinaldo Azevedo em 25.04.2012.
Neste período de investigação de doença, não há como não apelar para os outros
para evitar que os meus leitores me procurem e não achem nada nele, apesar
disto poder acontecer se cessarem as matérias que considero boas. Como todos
sabem, igual ao Fernando Henrique, eu tenho um pé na cozinha, pois meu pais,
muitas vezes, apesar de não ser puro, foi chamado de “negro de alma branca”, como hoje eu não gosto que meus opositores
me chamem de “branca de alma negra”.
Para mim seria muito fácil entrar num faculdade pelo regime de cotas. Bastaria
mostrar meus lábios. Entretanto, é pensando nos de nossa própria cor que sou
contra a este tal de regime de cotas. Eu não suportaria ouvir, depois de
formada: “lá vai a cotista!”. Comigo
seriam 114 signatários da carta. (LP)