Falaram tanto na PEC das domésticas que eu resolvi escrever
algo a respeito, pois sou eu, como dona de casa, por quase meio século, que tenho
mais experiência para dizer alguma coisa.
O Congresso promulgou a PEC que amplia benefícios para os
trabalhadores domésticos. O assunto é polêmico e há uma expectativa de que isto
possa ser um tiro no pé das domésticas. Quando se diz isto, nossa Senhora! Logo
nos taxam de “políticamente incorreta”.
Eu não temo muito os rótulos. Procuro ver logo dentro da embalagem.
Se analisarmos o tema sem paixão e sem ideologias capengas,
teremos que ver o que está em jogo com a medida legal. Ela prever uma “inclusão” dos empregados domésticos no
mercado formal de trabalho. E talvez da mesma forma que a Lei Áurea previa a “inclusão” dos escravos no mundo habitado
por humanos. Penso que ambas as medidas, simplisticamente, aqui comparadas,
possam ter os mesmos problemas se não se ativerem ao que permite a sociedade.
A intervenção do Estado, num sentido amplo, na sociedade só
é possível se esta sociedade está preparada para as leis anunciadas, porque se
não estiver, pode virar letra morta e ser uma daquelas leis que existem e nunca
se cumprem para todos. Ou vocês acham que a CLT é cumprida no Brasil, em suas
relações de trabalho, ainda hoje?
Mas, vamos aos finalmente porque aqui não é o lugar para
repetir tudo que já foi dito e sim dizer um pouco mais, o que, de uma forma ou
de outra modificará o mundo. E farei isto, vendo a minha situação de dona de
casa, que mora com alguns filhos e netos e um marido já beirando a necessidade
de um “cuidador de idosos” (se ele
ler isto vai dizer que quem está precisando sou eu, mas, isto não é importante
para o argumento). Já tive até duas empregadas domésticas, no passado. E,
sinceramente, elas só saíram para se casar e sem muitas queixas de mim.
Podem até dizer que eu estou me comparando a uma boa senhora
de escravos e que alimentando bem os meus, eles ficavam satisfeitos. Pode até
ser, mas isto é passado, embora esteja certa de que colaborei para o progresso
de suas famílias, sendo hoje todas minhas amigas. Ou seja, as boas relações de
trabalho prescindem da carteira assinada.
Parece até que estava prevendo o futuro, embora tivesse
algumas dúvidas de que um dia fosse haver um lei para regulamentar as relações
entre patroa (quase sempre mulheres) e empregadas domésticas (quase sempre também,
embora existam bons cuidadores de idosos, homens), e resolvi, e já faz um longo
tempo, viver sem empregada. Primeiro tive que lutar contra meus filhos a quem
criei de forma errada, reconheço, e hoje todos lavam pratos (embora deixem
alguma gordurinha), sem reclamar tanto.
Os meus netos nunca souberam o que seria uma babá e até
estranham seus amiguinhos terem, e muitas vezes tem duas (penso que é uma para
limpar o xixi e outra para limpar o cocô, e não sei se a lei prevê um adicional
para a última cuja atividade é menos agradável). Eu e os pais demos conta muito
bem do recado e até colocamos o avô na roda, servindo como bobo da corte nas
brincadeiras.
Então o que tenho a ver com a PEC? Quase nada se não tivesse
uma faxineira, a Vilma, que vem aqui uma vez por semana. É dela que tiro as novidades.
E não dela própria pois (ela diz que foi um azar danado) em todas as casas que
ela trabalha, só o faz um dia por semana, o que não é considerado vínculo
empregatício. Então, para ela, não vai mudar nada, e mesmo se tivesse que
assinar sua carteira, teria muitas dúvidas porque poderia perder o Bolsa
Família (que também é ilegal porque ela recebe nas várias casas mais do que o
teto para o programa).
Mas vejam o diálogo que ela teve comigo, que é um tanto
esclarecedor.
- Dona Lucinha, a senhora viu a nova lei da doméstica?
- Vi Vilma.
- Vai mudar alguma coisa prá mim aqui?
- Não. Você é diarista e só vem aqui um dia por semana. Você
não tem vínculo empregatício.
- O que é isto? Eu não sei bem não Vilma. Pelo que me
disseram é quando você assina a carteira do empregado.
- E isto é bom?
- Como sempre Vilma a resposta a esta pergunta vem sempre
seguida de outra: Bom, prá quem? Minhas empregadas antigas não tinham carteira
assinada. Naquela época não se usava isto. Elas nunca me pediram para assinar
carteira pois adoravam trabalhar aqui em casa. Algumas ainda são muito amigas
dos meus filhos.
- É, a senhora é uma boa patroa.
- Mas, isto não basta Vilma. O que você está dizendo, as
escravas dos tempos de meus avós também diziam dos seus senhores e não deixavam
de serem escravas. Contudo, pensando bem, tenho certeza que algums escravos,
sentiram muita saudade da escravidão depois da Lei Áurea. Principalmente
aqueles que não tinham noção do que seja ser livre. Para mim a liberdade é um
bem em si. Não adianta muita comida sem ela. Agora com esta lei das domésticas,
talvez aconteça o mesmo. Algumas sentirão saudade dos tempos de pré-vínculo.
- Não entendi nada, Dona Lucinha.
- Trocando em miúdos, Vilma. Eu penso que a felicidade das
pessoas não está ligada muito a uma carteira assinada. Você pode ter seus
direitos assegurados por uma relação contratual informal justa e respeitosa. A
interferência do Estado muitas vezes atrapalha. Vou lhe dar um exemplo. Há um
monte de gente desempregada e que adoraria estar empregado mesmo que não tivesse
carteira assinada, mas, os empregadores
não podem empregá-las sem correrem os riscos de serem pegos por fiscais do
trabalho, que algumas vezes servem apenas para comer bola. Prá você ver, tempos
atrás alguém quis aprovar uma tal de Lei da Palmada, que dizia que era proibido
bater nas crianças, mesmo os pais. Eu duvido que esta lei fosse cumprida e nem
deveria. Eu mesma orientaria minha filha a ir para o banheiro quando o Júlio
merecesse umas palmadinhas.
- Ave Maria, Dona Lucinha lá onde moro todas as mães iriam
presas, inclusive eu. Com a lei das domésticas, já tive três amigas que viraram
diaristas, e não foi porque quiseram e sim porque as patroas mandariam elas tomar seus rumos se não fizessem isto. Teve até uma que implorou para ficar como
diarista durante a semana, mas a mulher era dessas cumpridoras da lei danadas e
não aceitou.
- Olhe Vilma, havia um Coronel lá na minha terra que dizia
que a lei era como uma cerca, se ela é muito alta a gente passa por baixo e se
ela é muito baixa a gente pula. Uma lei na medida certa, que a gente não pule
nem passe por baixo é muito difícil. Eu penso até que nem existe. Aí é que vem
a ética, a moral e a formação religiosa que ajuda o Estado e a sociedade a se
desenvolverem. Entende?
- Não!
- É realmente difícil. Mas, o pessoal, suas colegas ficaram
satisfeitas?
- Só vi uma que a patroa assinou a carteira e estava
satisfeita. Ontem foi mandada embora.
- Por que?
- Ela passou a manteiga na banda de um pão e não passou na
outra.
- E por que não passou na outra?
- Porque ela disse que já estava fora do seu horário de
trabalho. Agora vai ao sindicato.
- É Vilma, vai ser difícil a lei pegar, principalmente aqui
no Nordeste, com o desemprego que existe. Ainda hoje tem gente que não cumpre
nem a Lei Áurea. Imagine a PEC das domésticas!
Não conversamos mais porque a Vilma é uma faxineira muito
competente, foi direto ao seu trabalho. Ela difere de outra faxineira que conheço,
que tem quase o mesmo nome, exceto o “V”.
Lucinha só a você para ler. Não há hoje quem não leia seu blog aqui em Bom Conselho, bem alguns não pode. Continue a nos da texto como este. Parabens.
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